Para fugir dos pais, do irmão mais velho, no esconde-esconde, no
pega-ladrão. Correr é natural
para as crianças. Se nós incluímos o esporte na rotina para fugir do
sedentarismo e ganhar pique, para eles é uma grande brincadeira, é
farra, é puro instinto. Pode ser mais. Pode ser o pontapé para uma
adolescência e uma vida adulta ativa, saudável e bem longe de
consultórios médicos e estatísticas assombrosas. Mas qual é a melhor
maneira de estimular as crianças a praticarem um esporte sem tirar delas
a simples alegria de correr?
Simples: jamais tirar o foco da diversão. “Quando as
crianças são muito pequenas, a ênfase não deve estar na competição nem
em correr distâncias específicas”, diz Carol Goodrow, autora de Kids
Running (em tradução livre, “Corrida para crianças”). “Não tem problema
se elas começarem a correr e pararem, ou se acelerarem e diminuírem o
ritmo.” Susan Love, diretora do Just Run (www.justrun.org), programa
online gratuito de corrida para crianças de 5 a 12 anos, concorda. “Logo
cedo, a criança deve desenvolver o conceito de que correr é divertido”,
diz ela.
Só alegria
Estudos mostram que é duas vezes mais provável que adultos
praticantes de atividade física tenham sido esportistas quando jovens,
se comparados a adultos sedentários. Nós, corredores, podemos estimular
as crianças a seguirem nossos passos. Mas não deixe seu entusiasmo tirar
o melhor de você. “Pais ou treinadores precisam ficar de olho nas
crianças para ver se elas estão realmente gostando de correr”, explica
Chris Donald, técnico de atletismo no Reino Unido. “É preciso encontrar o
equilíbrio e recuar quando necessário. Você também precisa se lembrar
de que algumas crianças irão dizer que gostam da corrida porque é isso
que sua mãe, pai ou treinador quer ouvir.”
As provas infantis são uma ótima maneira de
apresentar os benefícios da corrida às crianças, mostrar o lado lúdico e
saudável do esporte. O primeiro evento desse tipo foi promovido pelo
clube de corredores Corpore, em 1994. “Essas provas devem ser uma grande
festa e não uma competição”, afirma Armando Francisco,
diretor-executivo da Corpore. Hoje, são dezenas pelo país, atraindo
crianças dos 3 aos 14 anos, que geralmente percorrem de 50 a 800 metros e
se esbaldam em atrações paralelas oferecidas pela organização, como
brinquedos infláveis, ateliês e shows. A corrida em si lembra muito as
provas para adultos: têm largada e chegada, kit de corredor com camiseta
de prova, número de peito e medalha. Há provas só para os pequenos, as
que integram os eventos para adultos e ainda uma terceira categoria,
criada recentemente: provas em que criança e pai (ou mãe) correm juntos,
unidos por uma fita elástica. É o caso da Corrida Cartoon, que teve sua
segunda edição em São Paulo em 2012.
Nas provinhas, as crianças têm uma ideia da diversão e
adrenalina de competir; mas, de novo, elas devem seguir no próprio
ritmo. “Não arraste seu filho para uma corrida nem o faça participar de
um evento se ele não quiser”, diz Carol Goodrow. “E, se vocês correrem
juntos, você precisará reservar tempo no seu treino para ajudar e
estimular seu filho.” Na Corrida Cartoon deste ano, o que mais se via
eram filhos e pais cruzando a linha de chegada juntos e motivados. Novos
atletas surgiam, dos 4 aos 40 anos. Mas havia exceções, especialmente
nas categorias de 13 e 14 anos, em que pais (picados pelo bichinho da
competitividade) praticamente guinchavam os filhos na chegada. “Se o
objetivo da prova é incentivar o esporte e o convívio social, aprovo.
Mas, aqui no Brasil, há uma tendência a só se valorizar a vitória. Pais e
filhos devem entender que a ideia é se divertir”, afirma o médico Paulo
Zogaib, especialista em medicina esportiva pela Unifesp. Uma cobrança
exagerada pode até fazer a criança desistir do esporte. “Os pais devem
valorizar a participação e superação individual. A comparação é o início
da competição, e algumas crianças se sentem muito incomodadas e
pressionadas a melhorar ou entendem uma má colocação em uma prova como
uma falha. Valorize o feito do seu filho por ele mesmo”, indica Carla Di
Pierro, psicóloga do esporte do COB (Comitê Olímpico Brasileiro).
Susan Love acredita que um dos motivos pelos quais o
Just Run tem uma aceitação tão boa (6 000 crianças inscritas) é o fato
de ele ser totalmente inclusivo e não competitivo. “Fazer as crianças
manterem um diário de corrida é uma ótima maneira de integrar essa
atividade ao currículo escolar”, diz Susan. Mas quilometragem e ritmo
não são o foco desses diários, segundo ela. “No caso de uma criança de 5
anos, por exemplo, ele pode ter fotos do clima ou da paisagem
observados durante um trote ao ar livre. O das crianças mais velhas pode
ter uma redação com o tema ‘Do que eu mais gosto na corrida’.”
Colhendo benefícios
Segundo médicos da área esportiva, os treinos não
deveriam ser regulares antes da fase de maturação sexual e devem ser
personalizados e supervisionados por um profissional da área de educação
física. Confira abaixo as recomendações da American College of Sports
Medicine (Escola Americana de Medicina Desportiva). Indicações seguidas
por boa parte das provas brasileiras, que geralmente vão de 50 metros (3
anos) a 800 metros (14 anos).
Entretanto, como no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), uma em cada três crianças entre 5 e 9
anos está com sobrepeso, essa é literalmente uma questão de peso. Os
benefícios da corrida para a saúde física de crianças e adolescentes são
semelhantes aos benefícios para adultos: melhora do condicionamento
cardiovascular, ossos mais fortes, perfil de colesterol mais saudável,
melhor controle da glicose e alcance ou manutenção de um peso adequado.
Quanto mais cedo elas incluem atividade física na vida, melhor. Em um
estudo feito na University of Iowa, nos Estados Unidos, crianças que
realizavam atividade física de moderada a vigorosa aos 5 anos de idade
tiveram menor probabilidade de desenvolver sobrepeso aos 8 e 11 anos de
idade. A atividade física também ajuda a melhorar a força e
flexibilidade muscular e turbina agilidade, equilíbrio e coordenação.
Na medida - Distâncias indicadas para a corrida dos pequenos
O esporte também contribui para o aprendizado. Um
estudo feito pela University of Georgia, nos Estados Unidos, concluiu
que os exercícios regulares podem estimular a função e o desenvolvimento
cognitivos das crianças. Carol acredita que a corrida seja uma maneira
valiosa de gastar energia, principalmente para crianças com transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Um estudo publicado na
revista científica Paediatric Exercise Science mostrou ainda que os
exercícios também ajudam as crianças a lidar melhor com a raiva.
O pisante dos pequenos
Acerte na compra do tênis de corrida do seu filho
As cartilagens e os ossos das crianças estão em formação e são
mais suscetíveis a lesões, especialmente na região do calcanhar. “Tênis
minimalistas, com baixo amortecimento, podem favorecer o surgimento de
lesões como osteocondrites, que são inflamações de ossos e cartilagens.
Para crianças, o mais indicado é um tênis com amortecimento na região do
calcâneo e bom sistema antitorcional, já que esses atletas também
apresentam maior instabilidade articular”, afirma o médico do esporte
Gustavo Magliocca. A partir dos 14 anos, preste atenção na pisada do seu
filho e pense em investir num calçado específico. Se ele sentir dor,
procure um ortopedista. Confira três opções para a corrida infantil.
Dose certa
Se a criança decidir incorporar a corrida à rotina de treinos,
qual é a quantidade suficiente — ou excessiva — para elas? Não há um
consenso entre especialistas. “Cada criança é única. Tudo depende da
idade, do desenvolvimento físico, do nível de condicionamento, do tipo
de corrida e de preferências pessoais”, diz Carol. Há um ditado que se
costuma usar em relação a crianças no atletismo: “Elas não são
miniadultos”. Por exemplo: quando estão cansadas, as crianças mais novas
param e, às vezes, sentam-se. Elas ouvem mais o corpo que qualquer
criança mais velha — e certamente muito mais que os adultos. “A maioria
das crianças só consegue correr distâncias curtas sem ter de fazer uma
pausa. Mas, se permitirmos, elas farão o tempo de recuperação
necessário, por instinto”, afirma Mike Antoniades, técnico de corrida
que trabalha com crianças no Reino Unido.
O ortopedista Rogerio Teixeira, especialista em
medicina esportiva pela Unifesp, não recomenda a corrida como prática
regular antes dos 7 ou 8 anos de idade, “fase em que o joelho completa
seu crescimento em termos de angulação”, afirma. Na verdade, os médicos
indicam que se espere até a fase de maturação sexual (que varia muito e
pode acontecer aos 10 ou 14 anos) para a introdução de treinos
regulares, já que, antes disso, a estrutura óssea e muscular ainda está
em formação. “E a criança ainda não tem concentração suficiente para um
treino repetitivo e constante, fica enfadonho. Se nessa fase
direcionamos a atividade para um só movimento, perdemos a chance de
diversificar o padrão motor. Nesse momento, especializar seria um erro.
Vai nadar, correr, pular, equilibrar-se! No fim de semana, correr uma
provinha por diversão, ok, mas, durante a semana, diversifique”, afirma
Zogaib.
Na assessoria esportiva MPR, de São Paulo, o
treinador Fabio Ferreira dá treinos para alunos a partir de 14 anos.
“Abaixo dessa idade, o ideal é que seja mais uma recreação, brincadeiras
lúdicas com a corrida.” Segundo ele, somente a partir dos 14 ou 15 anos
seriam indicados treinos específicos de corrida, de duas a três vezes
por semana. “Mesmo nesses casos, indico que pratiquem outras modalidades
em paralelo.” Especialistas alertam: treinadores e pais devem evitar
sobrecarga, que pode causar lesões em ossos e cartilagens. “Qualquer dor
que dure mais de uma semana tem de ser avaliada. Mesmo para
adolescentes, o volume de treino não deveria ultrapassar 1 hora por dia,
até quatro vezes por semana”, indica Rogerio Teixeira. A IAAF
(Federação Internacional de Atletismo) recomenda que, até 14 anos, a
frequência de treino não ultrapasse três vezes por semana.
Ao correr com seu filho, elogie o empenho dele e não
só o resultado. “A criança precisa se sentir feliz, reconhecida pelos
pais, e jamais deve ser obrigada a fazer algo ou pressionada a obter
algum tempo”, afirma Carla Di Pierro. E procure dar dicas sobre a
postura, sempre de forma leve e descontraída. Aproveite que as crianças
têm por hábito copiar os pais e mostre que os ombros devem ficar
relaxados e os braços, paralelos ao corpo. “Uma criança de menos de 15
anos normalmente leva 30-40 minutos para dominar os aspectos básicos da
boa postura. Em comparação, o adulto geralmente precisa de seis treinos.
Elas aprendem muito rápido”, afirma Mike.
Se a corrida for incorporada à rotina de seu filho,
leve-o a um ortopedista para uma avaliação postural. Para os treinos,
busque orientação de um profissional de educação física. A consultoria
esportiva Rio Saúde oferece aulas para alunos a partir de 8 anos. São
dois treinos semanais, de 40 minutos a 1 hora, no Bosque da Barra. “O
foco é sempre a diversão, são treinos lúdicos para iniciar crianças e
jovens no esporte”, diz o treinador Roberto Tadao. A partir da
puberdade, torna-se ainda mais importante o acompanhamento de um
treinador. “Um profissional que respeite as características individuais e
metas dos alunos e que já tenha grupos para crianças e adolescentes.
Assim, eles se sentirão mais à vontade e motivados”, afirma Fabio
Ferreira, da MPR.
FONTE: REVISTA RUNNER'S WORLD BRASIL